“Todos nós, povos indígenas, estamos na mesma luta”, diz cacique Dorinha Pankará

A cacique sertaneja Dorinha Pankará conversou sobre a situação do seu povo e dos indígenas do estado diante de uma pandemia que atinge os mais vulneráveis do país

No alto sertão pernambucano, a algumas centenas de quilômetros da capital, a força encantada da natureza fez nascer a Serra do Arapuá e foi aí, nesse território incrustrado no município de Carnaubeira da Penha, onde se fixou um dos povos indígenas do estado. Há muitas gerações, os Pankará vivem nesse lugar, sua terra sagrada, como assim é vista a terra no olhar dos que aqui viviam bem antes da colonização.

Os Pankará estão entre as sete etnias remanescentes de Pernambuco, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai). Sua particularidade reside no fato de ter como cacique uma mulher, algo raro entre os povos indígenas, embora a liderança feminina seja algo bastante presente nas comunidades originárias. “Sou cacique desde 2003, quando fui escolhida pela natureza para dar continuidade à luta do povo Pankará e considero que trago uma missão entregue dos meus antepassados”, afirma a cacique Dorinha Pankará, em conversa por áudio de Whatsapp com a Continente.

No mês de maio, procuramos ela, Ailton Krenak e Cris Pankararu para saber mais sobre a situação dos indígenas brasileiros em meio à pandemia da Covid-19. A conversa com Dorinha, você lê a seguir. A com Krenak, você ouve no nono episódio de nosso podcast, o Trópicos, que foi ao ar esta semana, e o depoimento da liderança Pankaru, de Pernambuco, na reportagem especial de capa de junho, acerca do mundo pós-pandemia.

Na atualidade, os Pankará somam aproximadamente 5.280 indígenas, entre aldeados e desaldeados, de acordo com Dorinha Pankará. A pandemia do novo coronavírus levou uma de suas lideranças, que morava na cidade de Floresta, próxima à Serra do Arapuá. Ela não contraiu a doença no território. A seguir, Dorinha conta essa história e outras de quem está mais vulnerável a essa nova e bastante desafiadora ameaça.

CONTINENTE Primeiramente, gostaríamos de agradecer por sua confiança e participação nesta entrevista. Como tem sido o enfrentamento a essa pandemia pelo povo Pankará?
DORINHA PANKARÁ Enfrentamos dificuldades sim, porque sabemos que laborar com pessoas não é fácil, existem indígenas que talvez não compreendam. Por outro lado, a gente tem dificuldade por não ter um suporte para manter o isolamento social, os indígenas precisam sair pra fora, para que possam ter o alimento, né? Porque pra ter isolamento social, precisamos de alimento, kit de higiene, tudo para os índios se manterem dentro do território, e sem entrar pessoas estranhas. Nesses três meses, a gente vem enfrentando essa luta com essa pandemia, esse vírus devastador, que veio para acabar não só com os povos indígenas, mas o mundo inteiro. Mas a gente sabe que isso atinge mais as classes menos favorecidas; os povos indígenas, os quilombolas, os sem-terra, os sem-teto, todos aqueles que vivem na vulnerabilidade, que têm mais facilidade de pegar esse vírus. Então, estamos isolados com barreiras na entrada de nosso território, para assim proteger nossos idosos, nossas crianças e o povo Pankará como um todo.

CONTINENTE Sobre a questão da alimentação, com relação ao autossustento de vocês, à agricultura, como está isso, já que choveu bastante no Sertão recentemente? Não seria suficiente para manter o isolamento?
DORINHA PANKARÁ A questão da alimentação, a gente planta… Choveu, graças a Deus, bastante. Nós temos feijão, milho, mandioca, mas eles precisam sair para comprar outras coisas que nós não temos aqui. Por exemplo, o arroz, o óleo, a carne, enfim, essas coisas. O tempero, o sal, essas outras questões. Por isso, tem também essa dificuldade, às vezes saem ainda pra comprar alguma medicação, alguns pacientes que tomam remédio controlado e que, de vez em quando, falta no município, né? Aí o município entra com a contrapartida, mas eles só saem em extrema necessidade. Se tivesse a ajuda da Funai com a questão das cestas básicas, que não é tudo, mas ajuda, seria mais fácil está segurando essas pessoas, porque vem bastante arroz, já não precisaria sair pra comprar fora.

CONTINENTE Existe algum tipo de apoio sendo articulado, neste momento, aos povos indígenas de Pernambuco e outros estados?
DORINHA PANKARÁ Tivemos algumas ajudas do governo, mas não muita ainda. A Funai não deu nenhuma ajuda ainda. Segundo as informações, estavam vindo umas cestas básicas, que isso, pra nós, é importante, levando em consideração que muitos indígenas sobrevivem da venda do artesanato, dias de serviço e, com essa pandemia, eles estão impedidos de conseguir o dinheiro para comprar os alimentos e aí seria muito bom que a Funai e outros órgãos pudessem nos ajudar, não só ao povo Pankará, mas a todos os povos indígenas, principalmente os povos indígenas de Pernambuco. Estamos fazendo esse trabalho na coletividade, entrando em contato, por telefone, Whatsapp, com os povos e, assim, continuamos na luta para enfrentar esse vírus.

CONTINENTE Como tem sido o cuidado de vocês em relação aos seus idosos, ao pajé, aos anciãos, aos mais vulneráveis?
DORINHA PANKARÁ Hoje, a maior preocupação nossa é com nossos velhos. Temos também as pessoas que têm doenças crônicas. Temos muitos dentro do território que têm hipertensão, diabetes, outros com acompanhamento de CA (câncer) aí no Recife. Isso está muito preocupante para nós, mas dizer que o povo Pankará está organizado, unido, com isolamento social, embora não 100%, tentando e conscientizando a população para que fique em casa. Ficar em casa é a melhor forma de prevenção. Não aceitamos também visitas, só em extrema necessidade é que a gente abre exceção pra entrar pessoas de fora. E assim vamos seguindo até o dia que Deus quiser. Entregar a Deus e à Força Encantada que nos defenda, não só os povos indígenas, mas todo o povo brasileiro, desse vírus que está devastando, acabando com o povo.

CONTINENTE Como está a situação da saúde dos povos indígenas do estado e de vocês em relação ao contágio do novo coronavírus?
DORINHA PANKARÁ Quanto a essa questão do Covid dentro de Pernambuco, até o momento, infelizmente já teve casos no povo Fulni-ô, Atikum, Pankararu e um caso aqui no meu povo Pankará, uma senhora de 68 anos que faleceu. Na verdade, (o vírus) não foi adquirido dentro do território, ela teve um AVC e teve de ser levada para a cidade de Floresta; de Floresta, ela foi pra Serra Talhada e, de lá, foi encaminhada ao Recife. Melhorou um pouco, estabilizou o quadro de AVC, mas terminou que contraiu o Covid-19. Ela retornou pra casa, pra Floresta, ficou na cidade, e acho que uns quatro, cinco dias depois que chegou, ela teve falta de ar e, logo em seguida, faleceu, infelizmente. Era uma liderança do povo Pankará. Todos nós, povos indígenas, estamos na mesma luta, com a barreira sanitária, orientando nosso povo com a ajuda da equipe, povos entre povos. Trabalhamos sempre na coletividade, juntamente ao Disei, o Distrito Sanitário Especial Indígena de Pernambuco, que faz sua parte junto à Funai, através das CTL (Coordenações Técnicas Locais). Todo mundo trabalhando em prol de que nós possamos manter o isolamento social e sair dessa pandemia.

CONTINENTE Sabemos que a maioria dos povos originários do Brasil é liderada por homens e você é uma cacique, em Pernambuco. Qual a importância das lideranças femininas, das mulheres para os povos indígenas?
DORINHA PANKARÁ Sou cacique desde 2003, quando fui escolhida pela natureza para dar continuidade à luta do povo Pankará e considero que trago uma missão entregue dos meus antepassados, para que eu possa dar continuidade à luta e ao bem-estar dos Pankará. É uma missão. Eu tive muitas dificuldades, no início sofri muitas discriminações. Hoje sou perseguida, sou assegurada na Comissão dos Direitos Humanos e sempre sou perseguida pelos não indígenas, pelos governantes, mas vou continuar essa luta até meus últimos dias de vida, assim como Deus determinar, porque pra mim não é um cargo, não é um poder e, sim, uma missão. Mas queria dizer que também sou respeitada no estado de Pernambuco, nacional e internacionalmente, e principalmente por meu povo Pankará. Isso pra mim só me fortalece, me dando mais força para continuar na luta.

CONTINENTE Dorinha, você faz parte da Apoime, a Articulação e Organização dos Povos Indígenas do Nordeste, Espírito Santo e Minas Gerais. Como tem sido a articulação dos territórios a partir dessa entidade?
DORINHA PANKARÁ Além de cacique, também sou presidente do conselho local de saúde, representante do povo Pankará no Condisi, o Conselho Distrital de Saúde Indígena, de Pernambuco. Também sou da Copipe, Comissão de Professores Indígenas de Pernambuco, e faço parte da Apoime na coordenação das mulheres, junto a Eliza (Pankararu). O trabalho nosso é organizar as mulheres e os homens também, mas em especial as mulheres, para defender a questão territorial, o direito como um todo, a questão de gênero, o respeito às mulheres e à decisão das mulheres. Enfim, é um enfrentamento nosso. Às vezes, conseguimos algumas vitórias, outras vezes não, mas sabemos que só existe direito se tiver luta. Nós temos direito, mas, antes do direito, nós temos o dever de lutar em defesa dos direitos dos povos indígenas, principalmente (em defesa) da terra, porque, sem terra, entendemos que não há vida. E dentro da saúde, discutimos a saúde como um todo, tem um conselho de liderança que discute isso. Na Copipe, nós definimos a educação indígena no estado de Pernambuco, que é específica, diferenciada e de qualidade, através das lutas das lideranças, para que o governo dê suporte para que a gente realmente tenha acesso a uma educação específica, diferenciada e de qualidade.

CONTINENTE O que vem a ser uma educação específica, diferenciada e de qualidade?
DORINHA PANKARÁ A educação específica, diferenciada e de qualidade, da qual eu falo, é construída pela Copipe, que é a Comissão de Professores Indígenas de Pernambuco, onde nós temos o calendário específico de cada povo. Trabalhamos os conteúdos da rede regular, mas dentro dos conteúdos, nós trabalhamos, por exemplo, na disciplina História, a história do povo, na Geografia, nossa área geográfica, nossa região, enfim, trabalhamos tudo de acordo com a realidade de cada povo. Então, cada povo tem seu calendário específico e diferenciado, seu diário, suas datas comemorativas. Nós seguimos, sim, as normas do Estado, mas incluímos nossa história, nossa realidade, nosso projeto de vida, que é a formação de guerreiros e guerreiras para dar continuidade à luta em defesa do território dos povos indígenas.

CONTINENTE Afora o novo vírus, que outras questões estão na pauta do seu povo neste momento?
DORINHA PANKARÁ O povo Pankará discute hoje a questão territorial, que infelizmente parou. Nós estamos no processo de identificação e delimitação territorial. E isso é o nosso desafio hoje, que demarque a nossa terra, porque estou tendo muita dificuldade em adquirir projetos de sustentabilidade, alguma coisa que vem pro meu povo. Aí, a primeira coisa é a terra que não é demarcada. Mas hoje nós temos a saúde, duas equipes multidisciplinares atendendo assistência básica no território, tem uma educação específica e alguns projetos. Por exemplo, tem uma associação das mulheres que foram contempladas no programa Minha Casa, Minha vida, conseguimos 53 casas, que estão em processo de construção. Deu uma parada agora, por conta da pandemia, e não sei como vai ficar, porque tem um prazo pra entregar à Caixa Econômica, mas, enfim, estamos na luta e tenho de agradecer por essa oportunidade de estar falando um pouco sobre a minha vida e a vida do meu povo, e dos povos indígenas.

CONTINENTE Nesse momento, a gente sabe que está tramitando no Congresso Nacional uma medida provisória, a MP 910, conhecida como a “MP da Grilagem”, que autoriza grileiros a se apossarem das terras da União, e isso pode prejudicar muitos indígenas, o meio ambiente, enfim, trazer muitos problemas ao país. Além disso, o Acampamento Terra Livre, instrumento de luta anual de vocês em Brasília, não aconteceu, devido à pandemia. Como estão se mobilizando em relação a tudo isso?
DORINHA PANKARÁ Em relação ao Acampamento Terra Livre, a gente fez sim, não foi fisicamente, mas fizemos por live, onde discutíamos todos esses projetos de lei, tudo aquilo que esse desgoverno vem trazendo para dentro dos territórios, para acabar com nós, os povos indígenas, em retirando os nossos direitos. Então existe essa MP 910, que é a questão da grilagem, e existem outros projetos de lei que estão aí tramitando, a gente sabe, no Congresso Nacional e que a gente discutiu por live. Fizemos várias lives no período do Acampamento Terra Livre, através da Apoime, da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira). Então, a pandemia interferiu no Acampamento Terra Livre, mas, mesmo assim, a gente fez por live. E todo dia tinha um panorama de lideranças discutindo saúde, educação, a questão territorial, a questão das ameaças, projetos de lei. Teve também a Apoime, com as mulheres, da qual também participei numa live sobre a luta das mulheres e os desafios. Disso, foi tirado um documento, onde colocamos nossas angústias e nossas reivindicações, que foi encaminhado para os órgãos. Esperamos que esse governo, ou melhor, esse desgoverno aceite nossas propostas, que não aceitamos nenhuma MP, nenhum projeto que venha para devastar e acabar com a luta e a vida de nossos povos indígenas do Brasil.

Via Revista Continente

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