Rede de pesquisadores propõe ‘plantar água’ no Sertão através do ‘recaatingamento’

É possível ‘plantar água’? Com o sol e a Caatinga é sim! Uma rede de pesquisadores nordestinos e de outras regiões brasileiras, chamada de Ecolume, decidiu assumir o desafio científico de realizar estudos e ações de campo na questão da busca de uma simultânea e sinérgica soberania energética, alimentar e hídrica diante do contexto de vulnerabilidades e oportunidades em uma região que já está se tornando árida, como no caso do Sertão, e que se acentuam frente os efeitos da mudança do clima. Na região, o índice pluviométrico é historicamente baixo. Seus solos secos e já possui diversas áreas já desertificadas e outras mais em processo. Ainda assim, o grupo decidiu que vai ‘plantar água’.

 

O desafio foi encarado por um consórcio de pesquisadores de várias instituições nacionais e estaduais de pesquisa e de tecnologia, liderado pelo mais novo laboratório em atividade no Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA) voltado para as questões das mudanças do clima e a vegetação regional numa perspectiva socioeconômica e ambiental. Em até três anos, no Sertão do Moxotó, contarão inclusive com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que já liberou R$ 420 mil para os estudos. No local, os pesquisadores do Ecolume também receberão a ajuda da unidade educacional do Serviço de Tecnologia Alternativa (Serta), que possui uma escola em Ibimirim e expertise na área.

 

O aparente problema é uma oportunidade, como afirma a coordenadora técnica do laboratório do IPA, Francis Lacerda, responsável pelo projeto. Para as adversidades se tornarem benéficas à sociedade e à natureza, em especial na região semiárida onde a vegetação nativa da Caatinga já é adaptada ao clima local, a pesquisadora explica que é necessário existir um outro tipo de racionalização sobre a potencialidade energética do sol e de forma integrada com uso racional da água atenta ao solo e ao clima em sintonia aos cenários de mudanças climáticas.

 

Lacerda, que é doutora em Recursos Hídricos e climatologista há 26 anos do IPA, diz que “plantar água” é um desses benefícios possíveis. Ela fala em plantar água metaforicamente, a fim de dar sentido material e objetivo a um processo complexo entre solo, água, vegetação, clima e sobretudo o “comportamento humano”- seu estilo de vida. “Nos últimos 300 anos, o humano tem destruído o habitat de forma sistemática. Ela desmata, emite poluentes e promove mais maneiras de degradações ambientais”, diz a pesquisadora, frisando que tais questões predatórias foram as causadoras do advento das alterações do clima no planeta.

 

Quando essas questões são pensadas de forma integrada e sistêmica, considerando ainda a farta matriz energética solar, hoje discretamente utilizada para tal racionalidade, a climatologista garante que é possível “plantar água”. Para isso, deve-se focar também no reflorestamento das plantas da Caatinga (recaatingamente), as quais têm grande potencial alimentar e fim econômico, oportunidades estas também perseguidas pela Rede Ecolume.

 

O grupo é formado pelo IPA , Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Instituto Nacional do Semiárido (Insa), Instituto Federal do Sertão e também pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas).

 

O recaatingamento de plantas nativas, adaptadas há séculos ao clima semiárido e ao solo seco do local, a exemplo do umbu, o qual está em processo de extinção diante da falta de informação às populações, mesmo tendo grande potencial alimentar e para negócios locais através do seu beneficiamento para esse fim e até com atrativos farmacêuticos, continuam sendo cortadas largamente. O desmatamento da vegetação tem inclusive ampliando o processo de desertificação na região e com prejuízo para o solo e os recursos hídricos. Sem vegetação, eleva-se também a temperatura, com consequências diretas às populações.

 

Já com o reflorestamento, com algumas oportunidades já expostas, acaba por auxiliar na manutenção da umidade do solo e também contribui na regulação do microclima local, fundamental para a redução do calor com efeitos no ciclo pluviométrico e na retenção da água no solo. Portanto, ao plantar uma vegetação nativa, é como se estivesse plantando água e outros benefícios socioeconômicos e ambientais. Portanto, a valorização da Caatinga, em princípio, por conta dos desafios postos pelas mudanças climáticas, acaba potencializando o cenário de oportunidades, mas somente quando observadas através de um novo paradigma voltado para a soberania hídrica, alimentar e energética.

 

Os pesquisadores e colaboradores farão seus experimentos no Sertão, na unidade do Serviço de Tecnologia Alternativa (Serta), em Ibimirim, local onde já vem acumulando expertise em sintonia com a do projeto. Ademais, o Ecolume continua crescendo. E já vislumbra uma parceria internacional com a Universidade de Oxford, pois a Rede já busca consolidar outro projeto correlato com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura.

 

Desde janeiro, os trabalhos começaram. Já há duas frentes de atuação, ambas voltadas à pesquisa e ações práticas quanto ao reflorestamento do umbu. Parte dos 120 alunos do Serta criaram um grupo chamado Guardiões da Caatinga e estão coletando mudas de plantas da região, e cada um em suas casas está montado os seus viveiros “abertos”. Os estudantes são de cidades da região. Em outra frente, há uma parceria com o setor de Germoplasma do IPA, que tem o banco de plantas nativas geneticamente estudadas e suas qualidades descritas. E deve ser entregue mil mudas de umbu para o replantio até o fim do ano. Por outro lado, o Departamento de Bioquímica da UFPE está fazendo o trabalho de prospecção genética da planta pra listar as potencialidades.

 

Em relação ao eixo energético com o foco na matriz solar, abundante no Sertão, o Ecolume já tem buscado parcerias da iniciativa privada, a exemplo da Celpe, Sunew, entre outras startups, a fim de conseguir os painéis fotovoltaicos, mas sobretudo a transferência do conhecimento dessa tecnologia para as comunidades da região sertaneja. Lacerda espera contar com alguns desses parceiros, ou até mesmo com a ajuda do BNDES, que também já foi procurado pela climatologista. Ela é uma das pesquisadoras do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas.

 

Assim, nos próximos três anos, o desafio de “plantar água” está lançado pelo Ecolume. E todos os seus estudos focarão no campo prático através das pesquisas realizadas em diversas áreas científicas afins. E também na tecnologia e nos segmentos da educação e comunicação. Tudo isso a fim de demonstrar a viabilidade e potencialidades diante da necessária adaptação dos arcaicos paradigmas socioeconômico e ambiental – padrões estes que estão e continuam desconexos aos desafios colocados pelas mudanças do clima. Na próxima semana, dias 17 a 19, a pesquisadora estará em Brasília na sede do CNPq, onde haverá o primeiro encontro entre os projetos aprovados para atuar respectivamente nos Biomas Caatinga, Cerrado e Pantanal.

Via Voz do Planalto

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