O vaqueiro moderno do Sertão e a bandeira gay

Valmir Calaça é o homem que quebrou o estereótipo do macho, a falsa imagem de que todo sertanejo nordestino é machista e regido por tabus antiquados. Ele é aquele que teve coragem de tomar para si as dores da intolerância a uma orientação sexual. É o nordestino que, encouraçado, montou na égua Cristal rumo à Missa do Vaqueiro do município de Serrita, estado de Pernambuco, e lá empunhou uma enorme bandeira do arco-íris, símbolo maior da causa gay. Numa sociedade menos preconceituosa, é o que menos interessaria, mas, considerando a cultura do Nordeste, a informação a seguir faz de Valmir ainda mais valorado: ele não é da comunidade gay, um defensor de causa própria. “Sou um matuto esclarecido e agora resolvi que vou lutar por essa causa porque gosto de coisa difícil”, disse-me.

Quando, em junho, Valmir tomou conhecimento do ataque à Boate Pulse, em Orlando (EUA), no qual morreram 50 pessoas e deixou 53 feridos, ficou indignado. “Muito triste”, disse a mulher, dona Marluce, com quem ele convive há 26 anos e com quem tem dois filhos – Henrique (18 anos) e Hermano (14 anos). Após o atentado, que surgiu a ideia de levar a bandeira colorida junto das bandeiras de Pernambuco e do Brasil. Mas, como se sabe, a discriminação e o radicalismo noticiado em Orlando é replicado em menores proporções por aí. Foi quando na festa profana no distrito de Nazaré do Pico, município de Floresta, dois rapazes teriam sido agredidos, supostamente em razão da intolerância. “Basta”, pensou Valmir. Foi aí que tratou de encomendar o tecido apropriado a um comerciante para que a cunhada, Oneide, passasse o abanhado.

Valmir foi criado vendo pessoas próximas sendo criticadas ou oprimidas pela opção sexual. Contou com o apoio da mulher e filhos para seguir até Serrita com o desafio de ser olhado, questionado, julgado. “Eu apoiei, claro. Acho interessante ele ser uma pessoa aberta. Todo mundo deveria pensar como ele, que em toda família tem algum homossexual. A gente sabe que até na classe vaqueira há sofrimento, alguém que não se libertou”, diz Marluce.

Na missa, conta Valmir, até o bispo católico foi repressivo: “Ele mandou eu enrolar a bandeira. Não enrolei. Fui para o canto. Onde já se viu, se até o papa compreende e é contra o preconceito…”, frisa. O vaqueiro se manteve no propósito. “Tiveram amigos vaqueiros perguntando: ‘você sabia que é a bandeira dos viados?’. Eu dizia, claro. Olhe o que escrevi no peitoral de minha égua”. A frase era assim: “Diga não ao preconceito”. Cristal, nome da égua preferida dele, é a mesma que o acompanha Sertão afora em gaiolas de caminhões, quando viaja para tudo que é missa do vaqueiro . Seja em Belém de São Francisco, em Petrolândia, em Tacaratu ou em municípios de outros estados.

Na 46ª Missa do Vaqueiro de Serrita, Valmir e sua bandeira do arco-íris fez sucesso. O empresário e consultor da área de economia criativa André Lira estava distante do local por onde Valmir passava e avistou de longe a cena. Correu para registrá-la. “Pessoas o apoiavam, incentivavam para que ele abrisse a bandeira, inclusive outros vaqueiros”, contou André, admirado com a eloquência de Valmir para defender a liberdade das pessoas escolherem seus parceiros, independentemente do sexo deles. “Me impressionou muito. É a perspectiva da diversidade respeitada. Cheguei à conclusão de que matuto é quem mora na cidade”, afirma André.

A foto de André Lira, para mim icônica como síntese de um novo perfil de sertanejo que vive hoje distante das capitais, espalhou-se na internet. Foram muitos os predicados e palavras de apoio que se sobrepuseram a algumas críticas feitas. Poderia pinçar qualquer uma, mas a melhor opinião é a de Henrique Calaça, lutador de jiu-jitsu e filho de Valmir e Marluce: “Tenho orgulho do meu pai”. Assim ele disse numa resposta no Instagram.

Já gastei muita sola de sapato pelo Nordeste, Sertão sobretudo. Vi transformações de todas as formas. Em palavras, imagens e atos ao longo de mais de uma década. Precisava dizer o quanto me orgulho da coragem de Valmir. Não tive até então o prazer de conhecê-lo. Quando voltar ao Sertão, quero poder apertar a mão desse cidadão porque, para mim, ele fez história.

Foto: André Lira/Divulgação

Texto: Silvia Bessa

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